12 outubro, 2012

três receitas vegetarianas - veludo

para Veronika

Era nas tardes de domingo, aquelas tardes quentes e densas, o céu azul sem nuvens esticando sobre o tempo sua colcha de infinito. Era nessas tardes de domingo que doía mais. Doía tanto e tão fundo que às vezes era difícil caminhar. Mais um domingo em que acordava sem ele, que descia as escadas sem ele, em que era ela mesma a colocar na cafeteira o filtro, o pó, a água. E ele fazia falta em cada brecha entre os gestos, de modo que ao final de meia hora estava já exausta.
No quintal, o cachorro dormindo atento, fazendo menção de se aproximar ao mínimo sinal de atenção. Já o filho, desde sempre silencioso, sem vontade alguma de chegar perto. Pra ele também doía, ainda que ele cerrasse o queixo bem forte e represasse a enxurrada de lágrimas no fundo da pupila negra.
Naquele domingo, enquanto ela acabava de lavar a louça do café, o filho veio espiar a geladeira apesar da falta de vontade de comer. Abriu, fechou. Olhou na fruteira, voltou a abrir a geladeira. Inquieto. Até que comentou “mas pra que tanta maçã?”.
Surpresa, veio de luvas e espuma nas mãos verificar. Contou três sacos de maçã, de diferentes feiras. Talvez um deles ainda tivesse sido comprado por ele, pensou e doeu entre a constatação e a decisão. Deixadas ali, iriam estragar. Que agora eram dois, só os dois, a comer as frutas no café da manhã ou depois do almoço.
 “Acho que vou fazer uma torta de maçã”, finalmente pensou em voz alta, e o rosto do filho se iluminou em vontade. “Posso ajudar?”, ele perguntou e ela aceitou, oferecendo a ele uma cadeira para que a tarefa de lavar com cuidado as maçãs ficasse mais fácil.
Tirou a manteiga da geladeira, viu se tinha iogurte natural... Pegou a cerâmica branca e foi colocando, sem medir. Primeiro pouco mais de meio tablete de manteiga, que foi cortando em cubos e fatias. Depois o mesmo tanto de farinha, que resolveu peneirar para que o ponto ficasse mais fácil – foi então que se deu conta, sem pensar, que estava a desejar um domingo sem coágulos. Pôs as mãos na tigela e começou a misturar.
Na bancada, o filho esfregava as maçãs para depois secá-las, caprichoso.
Ainda na tigela, colocou uma colher de sopa iogurte natural e uma colher de chá de fermento químico. E então passou a contar as dez colheres de água. Uma, duas, três, quatro... sempre perdia a conta. Continuou a misturar a massa, sentindo o gelado do iogurte indeciso em se dissipar. Já nem se distinguiam mais os ingredientes, mas a ponta dos dedos sabia que ele estava ali, sem se decompor. Feito memória que mina água mansa nas brechas da vida a continuar.
O filhou acabou de lavar as maçãs e se cansou da ajuda. Foi para a sala, assistir tv.
Ela ficou ali, esticando a massa, colocando farinha, no esforço de esticar sem esgarçar a massa. Doía um pouco menos ver-se outra: massa fina e podre a procurar as bordas sem se rasgar. Não era mais ela mesma a se alongar cotidianamente, a tentar cobrir o buraco que ele deixou. Era só a massa, a massa de uma inesperada torta de maçã.
Abriu o armário para buscar o leite condensado. Pôs sobre o fogão a caçarola, a colher de pau atravessada, e a lata de leite condensado a escorrer. Pensou em chamar o filho, para ver se ele queria raspar o fundo, mas lembrou de um corte na mão e desistiu. Na geladeira, pegou o leite e os ovos. Uma lata de leite. Duas gemas, para o creme ter cor. Duas colheres de sopa de maisena. Mexeu bem antes de ligar o fogo – não queria nada empelotando, só a maciez do creme. “Creme veludo”, dizia a receita da avó. Sim, era de um pouco de veludo que precisava. O veludo da companhia dele, da quentura da sua presença macia. Mas tinha que se contentar com o doce na caçarola.
Mexeu bastante, até engrossar. Enquanto o creme esfriava, pôs-se a cortar as maçãs em meia-lua: tirou as sementes, cortou as fatias finas, jogou algumas gotas de limão para atrasar a oxidação.
O filho apareceu para roubar umas fatias, mas não se interessou em ficar. “já vai ficar pronto?”, mas a resposta negativa o levou de volta à sala, dessa vez para um desenho colorido.
Assou a massa até dourar. E quando o creme estava frio, colocou as duas gotas de baunilha e a lata de creme de leite, sem soro. Misturou bem, regozijando-se na textura lisa e amarelada. Na panela, a vida era macia e sem tumores.
Suspirou demoradamente antes de pegar a travessa com a massa e despejar, pão-duro em punho, o creme amarelado até quase as beiradas. Por cima, arranjou delicada as fatias finas de maçã, concêntricas. E só então se lembrou da cobertura, então correu para espremer duas laranjas e leva-las ao fogo com duas colheres de maisena. Ufa! Caldo engrossado, despejou-o sobre a torta, as meias-luas eclipsadas de laranja, já começando a cozinhar antes mesmo de entrar no forno.
Quantos anos não fazia aquela torta. Nos vinte anos que viveram juntos, nunca. Não era nem o trabalho, mas o medo de errar o ponto do creme, de servir as maçãs dançando soltas no branco aguado. Hoje, porém, o creme no ponto em poucos minutos. Agora, porém, o arrependimento até pelos erros não cometidos.
Depois do jantar – o dia chegando ao fim e a ilusão de eternidade dos domingos a se romper – ela e o filho inaugurando a torta. Meio a medo, o filho afirma “dessa torta o papai ia gostar”. O peito encharcado transbordando no olho enquanto corta o segundo pedaço. “Ele ia, não é?”. A torta derretendo na boca feito a vida no correr tempo.

2 comentários: