17 outubro, 2012

três receitas vegetarianas - festa



Depois de tantos anos de idas e vindas, de distâncias e aproximações tateantes, finalmente chegaram ali. Aqui, melhor dizendo: aqui nessa cidade, nesse bairro, nessa casa. Aqui, um frente ao outro.
Os quarenta anos derretidos em vinte, feito o alho-poró que começava a fritar no azeite e espalhava um cheiro bom de tempero e mato pela cozinha. “Mas você já fez essa receita antes?” ele desconfiou, com medo que o trabalho fosse maior que o esperado. “Nunca fiz, mas já comi”. “E adianta, saber o final?”. “Bom, é mais fácil que não ter menor ideia de como as coisas devem parecer...”, sorriu, pensando agora não no sabor do prato mas nos casamentos anteriores – o dele, o dela. Ele, porém, falando só da comida.
Taça de vinho na mão, ele estava em pé ao lado dela, rodeando a bancada onde descansavam a couve-flor, a vagem cortada grosseiramente, o pimentão amarelo e os palmitos de pupunha, luas cheias naquele céu de picadinhos. Entre o morno que emanava do fogão e a respiração dele, também morna, sentia-se amparada: naqueles parênteses de quentura e aconchego cabia um infinito.
“O pimentão não devia ser verde ou vermelho? Amarelo na paella vai ficar apagadinho...”, ele palpitou. Ela sorriu antes dizer “pode até ser, mas pimentões verdes e vermelhos não me fazem bem, são fortes demais, só consigo comer se tirar a casca, aferventar... até gosto, mas nessa altura da vida, só quero o que me vai bem”. De novo, não sabia bem se estava falando da comida ou daquela novidade de tê-lo ao lado todos os dias e noites, nos dias úteis e finais de semana, na rotina e nas férias. Sentiu-se de um só golpe sábia e velha – a recusar a festa completa por pura preguiça.
“Já tem as vagens e as ervilhas: acho que não atrapalha a paleta de cores...”, desconversou, jogando os legumes, as ervilhas frescas e o pimentão na panela. E a cozinha ficou inteira perfumada de intensidades. Enquanto isso, pegou os tomates já lavados, pelados e sem sementes e os passou pelo processador. Também pegou a água fervente da chaleira elétrica e jogou na pequenina caçarola, sobre o caldo de legumes congelado.
Cutucou a couve-flor e a vagem, a ver se já estavam macias, mas ainda não. As coisas têm seu próprio tempo, não adianta a nossa vontade. “Minha avó sempre vinha com um o apressado come quente e cru quando a gente circundava a panela com nossa gula”, contou. “A minha também falava algo como isso. Os adultos, desde sempre a tentar domar nossas voragens”, ele filosofou, servindo-se de mais um pouco de vinho.
Jogou finalmente as grandes rodelas de pupunha, não sem antes quebrar uma no meio e dividir com ele – espécie de comunhão. Mal acreditando no coração disparado no simples gesto, na ternura borbulhando perigosa feito a fervura do caldo de legumes enquanto passava a mão no rosto recém-barbeado. Quarenta anos e a meninice recém-descoberta.
Virou-se ligeira, numa desconversa de corpos, e jogou o caldo sobre os legumes. Também um bocadinho de sal, um bocadinho de pimenta. Cuidadosa, abriu no centro um espaço para mais azeite, o alho bem picadinho a dourar. Então a páprica, o tomate, o açafrão. A colorir o já colorido, reforçando tons, descobrindo matizes. Inaugurando o novo no familiar.
“Paella é uma comida tão simples e tão elaborada, né?”, ele mapeou o caminho de seus pensamentos enquanto ela colocava o arroz na panela. E era mesmo: arroz, legumes, grãos. Mas os cheiros e cores, tão diversos do nosso tododia, a prometer ocasião especial. Ela jogou ainda um raminho de alecrim fresco e colocaram-se a esperar, a conversa cheia de pausas e silêncios, cuidadosa como o cozinheiro diante da receita nova.
Meia hora depois, o limão siciliano ainda com a casca amarela a espalhar seus gomos por entre a panela. “Era esse o prato que você imaginava?”, ele perguntou. “É um pouco diferente”, confessou diante daquela imensidão de amarelo pontuada de verde e branco. Sentaram-se à mesa, experimentando em pequenas garfadas. “É um pouco diferente”, ela disse de novo, “mas ainda assim bom”.
Aqui, agora mesmo – o pequeno rito a prometer um para sempre.

2 comentários:

  1. troquei sim! na verdade, quando escrevi, o nome era esse mesmo "festa". foi na hora de colocar o nome do post que me atrapalhei e mudei... beijo!

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